A ideia do bem universal é perigosa

Bem Universal

O universalismo moral fracassou

Costumamos acreditar que a moral deve ser necessariamente universal, válida para todos de forma igual. No entanto, após seu debate com Alain de Botton no festival HowTheLightGetsIn, o filósofo Tommy J. Curry argumenta que conceitos morais tidos como universais — como democracia, igualdade e liberdade — acabam ocultando hierarquias raciais e políticas profundamente enraizadas. Em vez de garantir a dignidade de todos, esses ideais muitas vezes reforçam o domínio de determinados grupos, marginalizam os que estão à margem e justificam atos de violência em nome do progresso.

1. Os filósofos e a ilusão do bem universal

É comum que os filósofos reivindiquem para si uma espécie de percepção quase mística — ou até profética — da ordem fundamental do mundo. O filósofo acadêmico, inspirado nos mitos de uma era remota e guiado por espectros racionais como a razão e a lógica, proclama compreender o significado do “bem” e se vê moralmente incumbido de conduzir a humanidade em sua direção.

Considero, porém, que qualquer discussão sobre o fracasso da moral em impedir que grupos considerados “estrangeiros” ou “diferentes” sofram danos graves seja cansativa e repleta de revisionismos. O objetivo desta breve reflexão é expor a ideia de que a suposta universalidade da moral, na verdade, mascara hierarquias raciais e políticas que favorecem os “vizinhos” em detrimento dos “estranhos”.

Desde suas origens, as ciências humanistas concentraram-se na noção de “bem” e no comportamento dos seres humanos — especialmente os brancos — diante do bem e do mal. Immanuel Kant, em Crítica da Razão Prática, escreveu:

“A moralidade não é propriamente a doutrina de como tornar-nos felizes, mas de como nos tornamos dignos da felicidade.”

Kwame Anthony Appiah, em The Honor Code: How Moral Revolutions Happen, observou:

“A moralidade, por outro lado, como insistiu Immanuel Kant, é, em última análise, prática: embora o que pensamos e sentimos tenha relevância moral, a moralidade, em seu cerne, diz respeito ao que fazemos.”

Entretanto, essa leitura de Kant, segundo Curry, ignora o que o filósofo realmente pretendia ao refletir sobre o comportamento humano no mundo real.

2. Antropologia, raça e os limites da moralidade universal

Em Antropologia de um ponto de vista pragmático, Immanuel Kant afirma:

“Uma doutrina do conhecimento do ser humano, formulada sistematicamente (antropologia), pode existir sob uma perspectiva fisiológica ou pragmática.”

Podemos compreender o ser humano de forma fisiológica, ou seja, enquanto corpo composto de carne e osso, ou de maneira pragmática, que envolve — nas palavras de Kant — “a investigação sobre o que ele, como ser livre e atuante, faz de si mesmo, ou pode e deve fazer de si mesmo.”

Entender o ser humano em sua atuação concreta no mundo — como participante da vida coletiva e cidadão do mundo — é algo muito distinto do conhecimento teórico que busca imaginar uma relação racionalmente estruturada entre os “bens morais” e a capacidade da razão de concretizá-los em sociedades e indivíduos. Essa suposição foi, durante séculos, a base do esforço filosófico para reivindicar a moralidade como uma empreitada universal.



O mundo atua de formas distintas sobre indivíduos e grupos. A busca por uma moralidade universal pode se tornar mais perigosa do que um simples exercício teórico. Considerar o que os indivíduos fazem enquanto membros de nações ou coletividades ultrapassa a formulação prática de Kant apresentada por Appiah. Agir como parte de um grupo desafia a crença de que a razão, por si só, pode guiar o comportamento humano ou dissolver as afinidades internas.

Na realidade, quem não se adequa aos valores tidos como “bons” é frequentemente rotulado e marginalizado. A história europeia mostra que aqueles que não seguiam o ideal moral das nações brancas foram chamados de selvagens, indesejáveis e maus. Características como cor da pele, religião e idioma foram usadas como sinais de suposta barbárie.

Entre todos esses marcadores, a raça tornou-se o principal indicador antropológico que associava a existência humana à culpa e ao erro. A exclusão de grupos inteiros da humanidade — e sua expulsão das comunidades morais — é uma constante ao longo da história do Ocidente.

A moralidade universal parte da ideia de que todos os povos compartilham noções comuns de bem e mal, e que um ser racional reconheceria verdades eternas independentemente de sua cultura, idioma ou local de origem. Dessa conexão entre razão e moral decorre outra crença: a de que quem rejeita uma determinada moral é irracional — ou desprovido de razão.

Mas, no mundo real, nações e grupos agem movidos por interesse e poder. A moral, nesse contexto, reflete os valores e aspirações dos que estão no comando. O “bem” costuma favorecer as maiorias dominantes, garantindo benefícios para dentro do grupo às custas dos que estão fora dele.

O sociobiólogo Pierre L. van den Berghe explicou que:

“…existem três mecanismos principais da sociabilidade humana: a seleção de parentesco, a reciprocidade e a coerção. Grupos étnicos e raciais despertam nossa lealdade instintiva porque são, de fato — ou ao menos em teoria — superfamílias. No entanto, as relações étnicas e raciais não se limitam à cooperação dentro do grupo: elas também envolvem competição e conflito entre grupos. Enquanto as relações internas são ditadas por laços reais ou presumidos de parentesco, as relações entre grupos tendem a ser antagonistas… Com frequência, há competição aberta e conflito por recursos escassos, e não raramente o surgimento de estados multiétnicos dominados por um grupo à custa dos outros. A coerção, então, torna-se a base das relações interétnicas ou inter-raciais.”

Assim, a moral fornece o alicerce sobre o qual os Estados constroem suas leis e legitimam o controle daqueles que consideram semelhantes a si. Ao longo do tempo, essas relações de parentesco simbólico sustentam a dominação de certos grupos dentro de territórios e consolidam padrões morais que determinam como os “membros da família” devem ser tratados — regras que simplesmente não se aplicam àqueles classificados como estrangeiros ou fora do grupo.



3. Modernidade, civilização e a racionalização da violência

Essa tendência não passou despercebida por sociólogos e teóricos sociais como Zygmunt Bauman. Em sua obra Modernidade e Holocausto, Bauman argumenta que foi justamente a modernidade — com seu avanço tecnológico, sua estrutura burocrática e sua crença moral fundamentada na civilização e na regulação social — que tornou o Holocausto possível.

Bauman (1989) escreve:

“O mito etiológico profundamente enraizado na autoconsciência de nossa sociedade ocidental é a história moralmente edificante da humanidade emergindo da barbárie pré-social.”

Os filósofos, com frequência, afirmam que o progresso moral de nações como Estados Unidos e Reino Unido comprova a vitória da racionalidade sobre a selvageria primitiva. Segundo essa narrativa, a democracia liberal, a difusão do conhecimento moral e a racionalidade tornariam a escravidão, o apartheid ou mesmo os genocídios cada vez menos prováveis. Quando esses eventos ocorrem, dizem os filósofos, são apenas aberrações — falhas da razão ou resquícios de um passado incivilizado.

Entretanto, essas explicações grandiosas acabam funcionando como justificativas filosóficas para a incapacidade da própria filosofia em prever ou controlar os desvios da razão. O liberalismo, a educação e o conhecimento moral pouco fizeram para conter a crueldade e a morte dirigidas àqueles considerados diferentes em cor, crença ou origem pelas maiorias brancas ou pelos grupos dominantes.

Em Discurso sobre o Colonialismo, Aimé Césaire — assim como Huey P. Newton em War Against the Panthers — mostra que a moralidade, entendida como a luta entre o bem e o mal nas sociedades, é frequentemente delegada ao Estado. Para sustentar a imagem de cidadãos pacíficos, democráticos e ordeiros, os membros do grupo dominante transferem ao Estado o poder de eliminar as populações dissidentes, legitimando assim os mitos de liberdade, igualdade e ordem democrática — ainda que tais valores, na prática, impliquem custos tirânicos.



Enquanto Césaire ressalta a necessidade de “revelar ao burguês muito distinto, muito humanista e muito cristão do século XX que, sem perceber, carrega dentro de si um Hitler — que Hitler o habita, que Hitler é o seu demônio”, Bauman observa friamente que

“Em nenhum momento de sua longa e tortuosa execução o Holocausto entrou em conflito com os princípios da racionalidade.”

A moralidade, portanto, não impede as tendências coercitivas e assassinas das sociedades democráticas liberais, que reivindicam para si os ideais de civilização e progresso. Pelo contrário: essas sociedades eliminam os grupos externos para preservar os internos, priorizam os “vizinhos” sobre os “estranhos” e fazem disso o próprio alicerce do Estado moderno e das comunidades políticas.

A razão, por si só, não possui força suficiente para desafiar a sociedade que afirma ter criado.

4. Conclusão: O fracasso da moralidade universal

Em síntese, a moralidade não consegue proteger a dignidade e a humanidade dos estranhos diante dos vizinhos ou parentes. A moralidade universal, há tanto tempo celebrada pelos filósofos, desaba sob o peso de suas exclusões históricas e hierarquias políticas.

O que resta não é uma doutrina do bem comum da humanidade, mas uma cartografia moral do pertencimento — uma espécie de geografia ética que protege aqueles que estão próximos e pune os que estão distantes.

Falar em moralidade universal, portanto, é invocar um ideal ainda não realizado, uma aspiração que permanecerá vazia enquanto o estranho continuar sendo mantido fora do círculo de nossa preocupação moral.

FAQ – A crítica à moralidade universal

1. O que significa dizer que a “moralidade universal” fracassou?

A ideia de moralidade universal parte da crença de que existem valores morais válidos para todos os seres humanos, independentemente de cultura, tempo ou lugar. O texto mostra que, na prática, essa visão se desintegra porque as sociedades historicamente aplicam a moral de forma desigual — protegendo os grupos próximos (como a própria nação, etnia ou religião) e excluindo os “estranhos”. Assim, a moral universal não é realmente universal, mas uma ferramenta que legitima hierarquias e dominações.

2. Como filósofos como Kant, Bauman e Césaire se relacionam com essa crítica?

Kant foi um dos pensadores que ajudou a consolidar a ideia de uma moral racional e universal, mas autores posteriores — como Zygmunt Bauman e Aimé Césaire — mostraram suas falhas. Bauman, por exemplo, argumenta que a própria racionalidade moderna tornou o Holocausto possível, e Césaire denuncia como o colonialismo europeu mascarou a violência sob o discurso de civilização e moralidade. Ambos revelam que a razão e o progresso, longe de eliminar o mal, muitas vezes o institucionalizaram.

3. Qual é a principal lição deixada pelo texto?

A principal lição é que não existe moral universal enquanto houver exclusão. Enquanto a moral servir para proteger apenas quem pertence a um grupo — racial, cultural ou político — e punir os diferentes, ela continuará sendo instrumento de poder e não de justiça. O verdadeiro desafio filosófico é criar uma ética que reconheça a humanidade do outro, mesmo quando ele é o “estranho” fora do círculo social.

Com Conteúdo do iai news!

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