
Em 1654, o filósofo e matemático francês Blaise Pascal formulou o raciocínio por trás de acreditar em Deus, conhecido como a famosa “aposta de Pascal”. Seu argumento era simples: se alguém acredita em Deus e estiver errado, a perda é mínima; mas se não acreditar e Deus existir, o custo pode ser infinito. Assim, para um ser racional, a decisão parecia óbvia: apostar na existência de Deus.
Hoje, vivemos um dilema semelhante, mas com outro protagonista: a inteligência artificial de alta capacidade. A diferença essencial é que, neste caso, não falamos de uma possibilidade distante ou eterna — as evidências de que a IA terá impacto transformador surgem diariamente, e o horizonte temporal pode ser de apenas alguns anos.
A aposta atual é clara: ou a IA modificará radicalmente o trabalho, a educação, as empresas e a sociedade em pouco tempo, ou não. Se nos prepararmos e a transformação não acontecer, teremos apenas fortalecido a alfabetização digital, revisado instituições ultrapassadas e explorado novas formas de distribuição de renda além do salário. Perdas pequenas, no máximo. Mas, se ignorarmos os sinais e a mudança chegar rapidamente, o preço pode ser devastador: desemprego em massa, sistemas educacionais obsoletos e desestruturação social em larga escala.
A escolha racional, portanto, não deixa dúvidas: precisamos apostar que a transformação virá.
Basta observar o mercado de trabalho, que já demonstra sinais iniciais de impacto causado pela IA. Líderes do setor tecnológico, como Dario Amodei (fundador e CEO da Anthropic) e Eric Schmidt (ex-CEO do Google), ainda que em tom alarmista, preveem que até 50% dos empregos administrativos de nível inicial podem desaparecer dentro de um a cinco anos. Eles não estão sozinhos: economistas renomados, o laureado Geoffrey Hinton, o onipresente Elon Musk e diversos outros acadêmicos e executivos de peso alertam para um iminente “apocalipse do trabalho”.
A resposta mais comum — já ouvi incontáveis vezes — é que, ao longo dos milênios, as economias sempre resistiram aos impactos da automação. A cada salto tecnológico, o mercado de trabalho se reorganizou, criando novas funções bem remuneradas para substituir as que foram eliminadas. O raciocínio é: “sempre foi assim, não seria diferente agora”.
Mas talvez, desta vez, a história não se repita. As ondas anteriores de automação substituíram principalmente a força física; a revolução atual ameaça substituir o julgamento humano. Imagine o que pode ocorrer se sistemas de IA, escaláveis e de baixo custo, transformarem a inteligência humana em uma commodity acessível? Não falamos mais da substituição lenta de operários ao longo de um século, nem de pequenos choques no mercado que podem ser resolvidos com programas de requalificação para serviços básicos. Estamos diante da possibilidade de ver, em poucos anos, uma enorme parcela da força de trabalho de colarinho branco ser rapidamente deslocada.
E se estivermos equivocados quanto à dimensão dessa transformação? Qual seria o custo de nos prepararmos em vão? No pior cenário, acabaríamos com mercados de trabalho mais flexíveis, benefícios portáteis desvinculados do emprego formal e programas de renda básica universal que talvez nem fossem necessários. Teríamos ensinado às crianças pensamento crítico e criatividade em vez de simples memorização. Teríamos ajudado profissionais a desenvolver habilidades que complementam a IA. Mesmo em um mundo “estável”, em que a tecnologia não cause uma ruptura tão profunda, esses investimentos não seriam desperdiçados.
Independentemente de qual venha a ser o impacto da IA no longo prazo, uma coisa já está clara: nosso sistema educacional precisa de reformas urgentes. Hoje, ele forma pessoas para executar justamente aquilo em que a IA já demonstra superioridade — processar informações, seguir regras e gerar resultados padronizados. Assim, as universidades acabam preparando seus alunos para a própria obsolescência, e estes ainda pagam caro por isso. O foco deveria estar em competências que provavelmente continuarão raras em um mundo onde a inteligência pode ser acessada sob demanda: julgamento em situações de incerteza, raciocínio ético, criatividade para resolver problemas complexos e capacidade genuína de conexão humana.
E a mudança não pode parar por aí. Sistemas de saúde terão de se adaptar para equipes mistas, compostas por humanos e IA, além de definir mecanismos de responsabilidade para decisões tomadas por algoritmos. Mercados financeiros talvez precisem de “disjuntores” específicos para conter operações conduzidas por agentes artificiais. As cidades precisarão planejar o impacto da chegada de veículos autônomos, que eliminarão milhões de empregos de motoristas. O judiciário terá de criar estruturas para lidar com casos em que agentes de IA assinam contratos, geram invenções patenteáveis ou cometem crimes.
Também devemos considerar os riscos de usos maliciosos da tecnologia: desde ataques cibernéticos e roubo de identidade até o planejamento de atos terroristas potencializados por sistemas de inteligência artificial.
De enorme relevância, precisamos criar novas narrativas sobre o valor humano que não estejam tão presas ao trabalho e que considerem a presença total da inteligência artificial em nossas vidas. Quando as máquinas pensarem mais rápido, trabalharem melhor e até criarem com mais eficiência do que nós — e ainda se tornarem parte essencial de muitos de nossos relacionamentos —, o que dará sentido à existência? Se estivermos enganados quanto ao impacto da IA, ao menos teremos feito uma reflexão filosófica saudável. Mas, se estivermos certos e não nos prepararmos nos âmbitos filosófico, psicológico e cultural, corremos o risco de uma crise de propósito, que pode se traduzir em problemas generalizados de saúde mental — ou algo ainda pior.
Há quem defenda que o progresso da IA já atingiu um limite, que a regulação retardará sua expansão e que os humanos sempre manterão alguma vantagem. Talvez. Ainda assim, a lógica de Pascal se aplica: a assimetria dos resultados exige ação. Preparar-se para uma transformação que não venha a ocorrer pode até gerar benefícios inesperados. Mas ignorar uma mudança que realmente aconteça terá um custo gigantesco.
Pascal fez sua aposta sobre a eternidade. A aposta da IA é sobre um futuro próximo. Para cada indivíduo, os riscos podem parecer menores, mas, ao contrário do Deus de Pascal, a inteligência artificial não aguardará pelo “dia do juízo”: ela já bate à porta. Nesta aposta, o pior desfecho não é a IA falhar em suas promessas, e sim cumpri-las integralmente enquanto ainda discutimos se vale a pena acreditar que está acontecendo.
Faça sua escolha com sabedoria.
Com Conteúdo do Time!

Olá! Eu sou o Eduardo Feitosa, criador do Mundo Filosófico. Minha paixão pela filosofia nasceu do desejo de entender melhor o mundo, as pessoas e, claro, a mim mesmo. No blog, meu objetivo é tornar conceitos filosóficos acessíveis e descomplicados, trazendo reflexões profundas de uma forma clara e prática.






